Estados Unidos ordenam países europeus a violarem normas internacionais, criando incidente diplomático e provocando críticas sobre sua conduta imperialista.
Já havíamos comentado que o caso Snowden, deflagrado no início do mês passado, ainda traria desdobramentos geopolíticos - com maior ou menor tensão internacional, a depender do desenvolvimento de eventos e interesses de cada agenda envolvida. Da mesma forma como aconteceu em casos anteriores e semelhantes, este nos revela possibilidades de reflexão sobre diversos assuntos importantes na configuração do mundo atual, os quais giram, principalmente, em torno de dois fatores centrais. Um deles diz respeito a um dos paradigmas relacionados ao poder: o controle e a manipulação de informações. Se o acesso e o controle da informação sempre foram fundamentais para qualquer tipo de domínio ou poder, a situação se torna ainda mais complexa no século XXI, com as novas tecnologias que permitiram o aprofundamento da globalização. O outro fator se relaciona diretamente com a questão do imperialismo norte-americano e a hierarquia geopolítica do mundo contemporâneo.
O segundo fator ficou evidente por ocasião do incidente diplomático ocorrido com o presidente boliviano, Evo Morales, em 3 de julho passado. Morales estava em uma visita oficial à Rússia para assistir a uma cúpula de países produtores de gás. Na volta para casa, em pleno voo, foi surpreendido pelo cancelamento, por parte da França, Itália, Espanha e Portugal, da autorização para sobrevoar seus respectivos espaços aéreos. A ordem veio de Washington: os EUA, suspeitando que Edward Snowden pudesse estar no avião presidencial, ordenou aos quatro países europeus que proibissem o presidente da Bolívia de sobrevoar seus territórios. Os quatro países acataram a ordem, engessando a rota aérea de Evo Morales. Mas foi à França que coube a parte mais condenada pela opinião pública e por parte da imprensa internacional: ao negar a permissão para que Morales fizesse uma escala técnica em Paris, a diplomacia francesa ignorou o fato de que o avião presidencial ficaria sem combustível e acabou forçando-o a fazer uma aterrissagem de última hora no aeroporto de Viena, na Áustria. Os espanhóis chegaram ao ponto de querer revistar o avião, solicitação veementemente negada pelo presidente da Bolívia, que disse: “Isto é uma chantagem; não vamos permitir por uma questão de dignidade. Vamos esperar todo o tempo necessário. Não sou um criminoso”.
Imperialismo e subserviência
Snowden não estava a bordo do avião presidencial boliviano. Então, vieram críticas aos quatro países – especialmente à França -, bem como às ações de cunho imperialista por parte dos norte-americanos, pois não há outra forma de enxergar a situação onde um Estado-Nação dá ordens a outros Estados-Nações – que a acatam sem pestanejar –, num contexto mundial quase inteiramente fundado na democracia e no respeito à soberania alheia. Além disso, a ordem vinda de Washington violou as normas internacionais habituais, que concedem imunidade aos chefes de Estado e de governo, além das aeronaves (ou qualquer outro veículo) que os transportem. Há mais: a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidade dos Estados e da sua Propriedade, de 2004, inclui essas regras e as amplia, com o objeivo claro de blindar a imunidade soberana dos países e de seus representantes.
Em vista desse evento – que já provocou e ainda provocará mais desdobramentos geopolíticos, como a reunião extraordinária dos países membros da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) -, vale revisitar alguns fatos históricos que apontam os Estados Unidos como potência imperialista dos séculos XX e XXI, assim como indicam a subserviência e o endosso de parte da Europa:
- Bloqueio econômico de Cuba, que durou mais de cinquenta anos e teve plena adesão dos países poderosos da Europa Ocidental;
- Permissão das potências europeias para que os Estados Unidos e a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) bombardeassem (impunemente) o próprio território europeu – a ex-Iugoslávia – sem nem mesmo esperar pela decisão do Conselho de Segurança da ONU, desconsiderando-o;
- Autorização e conivência desses mesmos países europeus em incursões secretas da CIA para prender e locomover “presos fantasmas” de diversas nacionalidades, mas especialmente de origem árabe, que estiveram em cárceres clandestinos (o filme A Hora Mais Escura ilustra um pouco essa essa estratégia norte-americana de lidar com presos políticos);
- Inúmeros crimes de guerra perpetrados por Washington com total conivência das potências europeias, em lugares como a já citada ex-Iugoslávia, Iraque, Irã, Afeganistão, Líbia e Síria.
A partir disso tudo, portanto, é possível inferir que, além de os Estados Unidos agirem como um Império, o que, em tese, não são, a União Europeia é incapaz de adotar uma postura independente em relação aos norte-americanos.
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