Amplamente considerada a Certidão de Nascimento do Brasil, a famosa carta que Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei Dom Manuel entre 26 de abril e 2 de maio de 1500 descreve com admiração a terra recém-descoberta:
“Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados (...). Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”
Nessa mesma linha, os primeiros registros sobre as terras e os indígenas encontrados pelo navegador Pedro Álvares Cabral davam a ideia de um paraíso terreno. Do ponto de vista dos primeiros colonos, a beleza e a imponência das paisagens, a fartura de alimentos, a pureza das águas e o clima ameno combinavam com a saúde dos nativos. Ainda traumatizados com a Peste Negra, que, um século e meio antes do descobrimento, havia causado a morte de aproximadamente 50 milhões de pessoas, os europeus viam os índios brasileiros como robustos e ágeis, alheios às mortais enfermidades que ceifavam tantas vidas na Europa. Porém, esse forte encantamento que marcou a descrição das primeiras imagens do Brasil durou pouco.
Se, no século XVI, os primeiros marinheiros que retornavam a Portugal descreviam o Brasil como um paraíso. No século seguinte, a colônia portuguesa na América passou a ser identificada com o inferno. Aqui, os colonizadores brancos e os escravos africanos tinham poucas chances de sobrevivência. Os nativos também foram dizimados por doenças trazidas pelos europeus e com as quais ainda não haviam tido contato. Foram os casos, especialmente, da varíola, do sarampo e da gripe, que, juntas, foram responsáveis por dizimar números expressivos de índios.
Diante do dilema sanitário que colocava em xeque o projeto português de colonização e exploração econômica das terras brasileiras, o Conselho Ultramarino Português, órgão responsável por administrar as colônias, instituiu, ainda no século XVI, os cargos de cirurgião-mor e físico-mor. No entanto, incumbidas de zelar pela saúde da população sob domínio lusitano, essas funções permaneceram sem ocupantes no Brasil durante muito tempo. Raramente algum médico aceitava transferir-se para a colônia, dados os perigos que teria de enfrentar e os baixos salários que lhe seriam pagos.
Os riscos da viagem ao Brasil
A própria viagem ao Brasil era uma aventura de grande risco. As viagens realizadas pelas barcas, caravelas, naus e galeões que partiam de Lisboa duravam seis meses de um continente a outro, mas, dependendo do caso, podia decorrer até um ano e meio. Nas embarcações, o espaço era exíguo, amontoando-se pessoas, cargas e animais vivos. Extremamente desconfortáveis, insalubres e perigosos, de cada três navios que zarpavam de Portugal naquela época, um afundava. Vítimas de naufrágios, motins, ataques piratas, doenças, infestações e conflitos com os nativos dos locais visitados, cerca de 40% da tripulação morriam ao longo das viagens. Ocorriam, ainda, frequentes casos de depressão e de outras doenças psiquiátricas entre a tripulação e os passageiros, geradas, em sua maioria, pelas péssimas condições de vida nas embarcações e pelo isolamento da família e dos amigos.
A bordo dos navios, os sobreviventes ainda tinham de lidar com o insuportável mau cheiro e as acomodações precárias. As condições sanitárias estavam longes do ideal. A ideia de tomar banho, por exemplo, sequer se colocava. Os passageiros mais ricos faziam suas necessidades em penicos, que, depois, eram despejados no mar por seus encarregados. Já os mais pobres não tinham outra alternativa senão aliviar-se à frente de toda a gente, diretamente no mar, debruçando-se numa beira do navio, sob o alto risco de cair na água conforme a embarcação chacoalhava. A falta de higiene era causa de inúmeras doenças e mortes. Havia enorme carência de gêneros alimentares frescos. A carne e demais alimentos armazenados de maneira imprópria deterioravam rapidamente, levando à fome. A falta de água doce era outro terrível problema, já que a água do mar é inadequada para o consumo. A verdade é que as embarcações raramente portavam a quantidade ideal de comida, o que estimulava um mercado negro a bordo. Os oficiais mais graduados controlavam o negócio, e vendiam os alimentos disponíveis a quem pagasse mais. Aqueles que não tinham dinheiro, situação da maioria, se viravam à custa da caça de ratos e baratas, que infestavam os navios.
Médicos, religiosos e curandeiros
No ano de 1746, existia, ao todo, apenas seis médicos graduados em universidades europeias atuando nos territórios dos atuais estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraná e São Paulo. Os poucos profissionais que atuavam no país enfrentavam uma grande variedade de dificuldades. O território era imenso e o transporte, ineficiente. A população, em sua grande maioria, era bastante pobre e não tinha condições de pagar pela consulta. Além disso, o povo temia submeter-se aos tratamentos médicos. Na época, grande parte desses tratamentos empregava purgantes e sangrias, intervenções que frequentemente enfraqueciam os pacientes e causavam a morte daqueles em estado mais grave.
Nesse quadro, em vez de recorrer aos médicos de formação europeia, a população colonial, rica ou pobre, preferia utilizar os remédios indicados pelos curandeiros negros ou indígenas. Enquanto os boticários (espécie de farmacêuticos), físicos-mor e cirurgiões-mor eram raros e caros, os remédios populares e o curandeirismo estavam acessíveis a toda a população. A escassez de médicos, o alto preço das drogas e dos remédios oriundos de Portugal e do Oriente, bem como sua frequente deterioração nos navios e nos portos, também motivaram religiosos da Companhia de Jesus a se voltarem para os variados recursos naturais disponíveis no território brasileiro e para os saberes dos indígenas.
Nesse contexto, eles somaram-se aos curandeiros negros e indígenas na árdua tarefa de cuidar da saúde da população, mantendo em seus colégios boticas e enfermarias, além de terem atuado informalmente como físicos, sangradores e até cirurgiões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário