domingo, 30 de junho de 2013

O botânico de Stálin

Nikolai Vavilov coletava plantas em todas as partes da Terra. Ele queria vencer a fome no mundo - e morreu de desnutrição em uma masmorra, caluniado por um rival. Uma tragédia da pesquisa soviética

Final de dezembro de 1926: Nikolai Vavilov quer empreender uma expedição pela Abissínia, atual Etiópia – e recebe uma autorização do regente Ras Tafari. O botânico e o posterior imperador Haile Selassié entendiam-se perfeitamente bem
A CELA É ESTREITA e desprovida de janela. Uma cama, uma mesa, três prisioneiros. O homem deitado no colchão imundo é Ivan Filatov. Seu crime? Seu tio operava um próspero negócio de madeira. Na União Soviética do início da década de 1940, isso bastava para ser rotulado como um explorador. Ao lado de Filatov encontra-se espremido Ivan Luppol, um filósofo cujos pensamentos desagradaram os governantes estalinistas.
O cheiro naquele cubículo em que os homens estavam presos há semanas devia ser horrível. Uma única lâmpada iluminava o teto. Todos ali, no porão da “Prisão No 1”, na Rua Astrakhan, em Saratov, estavam condenados à morte. Só não se sabia quando os capangas de Stálin levariam a cabo as execuções.
É bem possível que os dois Ivans já tivessem se desesperado há tempos se não houvesse um terceiro homem na cela: Nikolai Vavilov, um homem que não desistia rapidamente. Para distraí-los, ele sugeriu que proferissem palestras uns aos outros. Filatov discorreu sobre o comércio de madeira, Luppol sobre a história – mas falou aos sussurros para que os guardas não o ouvissem. No entanto, devem ter sido principalmente as narrativas de Vavilov que permitiram aos homens sonhar e se ausentar mentalmente por alguns momentos da prisão.
Vavilov era etnobotânico, talvez o maior que o mundo já conhecera. Ele viajou pelos cinco continentes para coletar plantas. Destemido, cruzou o Afeganistão com cavalos de carga; atravessou a Eritreia com uma caravana, e se emprenhou pelas selvas do Brasil. De todos os lugares ele trazia sementes e mudas – aos milhares; provavelmente enchendo instituições inteiras. Desse modo, ele criou a base para a maior coleção de sementes e plantas do mundo.
Foi um empreendimento ousado para uma meta descomunal, porque Vavilov não queria nada além de salvar o mundo da fome – especialmente a sua amada Rússia – por meio do cultivo de plantas que tivessem um rendimento extraordinário até mesmo nos solos inóspitos e agressivos de seu país.
O PESQUISADOR INTUI O VALOR DA DIVERSIDADE DAS PLANTAS
Um sonho difícil de suplantar em grandiosidade; mas a história mostraria que Vavilov estava no caminho certo. Embora ainda se passassem décadas até o conceito de “biodiversidade” tornar-se uma expressão comum e, mais tempo ainda até que a decodificação do primeiro genoma de uma planta desse certo, o russo já intuía que só a diversidade genética da flora poderia garantir em longo prazo a sobrevivência da humanidade.
Somente assim seria possível encontrar sempre novas plantas que resistissem até às condições mais extremas: terras fracas, secas, frio, pragas. Logo de início, Vavilov percebeu que tinha pouco tempo, pois em suas expedições no início do século 20, ele já tinha constatado o desaparecimento de espécies. Então passou a coletar amostras obstinadamente – mas não testemunharia como o seu tesouro botânico um dia ajudaria milhões de pessoas, tornando-se mais precioso a cada ano.
O ditador Josef Stálin, no entanto, não acreditava no sonho de Vavilov. Ele precisava de bodes expiatórios, porque na Rússia, mais uma vez, as pessoas estavam morrendo de fome e Stálin queria esconder o fato de que era a sua política de coletivização forçada que as estava matando como moscas. Por essa razão, ele aderiu ao maior adversário de Vavilov e apoiou, inclusive, as teorias aparentemente mais agradáveis do jovem e ascendente Trofim Lysenko, que pregava meios revolucionários para estimular o crescimento mais rápido de plantas – e mandou jogar Vavilov no cárcere, como traidor e fracassado.
Agora o homem que fazia tanta questão de etiqueta e roupas adequadas, a ponto de usar um terno de três peças e gravata na selva, vestia um saco esfarrapado, com buracos para a cabeça e os braços, e sandálias grosseiras de casca de árvore. Sua alimentação diária consistia em algumas colheradas de papa de cereais, sopa de tomates podres, um pouco de peixe salgado, e repolho. Seus ossos já despontavam por todos os lados há tempos. Ele sofria de diarreia e suas pernas estavam cobertas de edemas que coçavam. O homem que queria combater a fome no mundo ameaçava tornar-se sua vítima.
Pior ainda: em sua cela, Vavilov deveria ter ouvido falar que o exército alemão estava diante de Leningrado. Era nessa cidade que se encontrava o QG de seu banco de sementes; o núcleo de sua coleção. Desse modo, ele estava ameaçado de perder a própria vida e, literalmente, seus frutos. No entanto, o botânico havia superado muitas situações adversas em suas viagens. Ele ainda tinha esperança.
A herança científica de Vavilov sobreviveu à era de Stalin – ainda hoje o banco de sementes que leva o seu nome, em São Petersburgo, preserva as amostras de plantas
FOI BOM QUE Vavilov não soubesse da terrível situação em que se encontrava a população de Leningrado. As tropas de Hitler mantinham a cidade sitiada desde o dia 8 de setembro de 1941: nada mais passava para dentro, nem comida, nem dinheiro, nem remédios. Enquanto as áreas residenciais eram alvos de constantes ataques de artilharia, os habitantes transformavam sua última farinha em pão, raspavam o fundo das latas de açúcar, e queimavam o resto do carvão que tinham. Era um inverno especialmente frio – até fevereiro de 1942, pelo menos 200.000 moradores da cidade tinham morrido de fome ou de doenças que seus corpos enfraquecidos não conseguiam mais combater.
No centro dessa desgraça, na opulenta Praça Isaak, localizava-se o “Instituto Nacional para o Cultivo de Plantas”, em cujo edifício baixo e deselegante estavam armazenados milhares de pacotinhos cheios de sementes, raízes e frutos, além de sacos de feijões e contêineres cheios de nozes, tubérculos, e cereais com elevado teor de proteínas – ao todo, várias toneladas de alimentos.
Quanto tempo poderia levar até que essa informação se espalhasse pela cidade?
Os funcionários do banco de sementes tinham conseguido esconder a tempo algumas amostras em uma fazenda experimental fora de Leningrado. Há quase dois anos eles tentavam adivinhar onde estaria seu chefe Vavilov – ninguém tinha ouviu falar dele desde que ele fora buscado por uma limusine preta para uma “reunião importante”, em Moscou. Ainda assim, eles deram prosseguimento à missão que ele havia começado com tanto entusiasmo. Eles cuidavam das sementes, testavam sua capacidade de germinação, e as semeavam regularmente para renová-las.
Durante vinte e quatro horas por dia eles montavam guarda no edifício sem aquecimento, para evitar que leningradenses mortos de fome atacassem suas amostras experimentais, destinadas ao propósito muito maior de não salvar apenas alguns agora, mas milhões de pessoas mais tarde. Eles penduraram as caixas de cultivo no teto, para que os ratos, que tomavam conta da cidade desde que os desesperados habitantes haviam matado e comido seus gatos, não pudessem alcançá-las. E queimavam no porão toda madeira que encontravam para aquecer as batatas e impedir que congelassem e se tornassem inúteis.
Os próprios botânicos ficavam cada vez mais fracos. Alexander Shchukin morreu em sua mesa; nas mãos ainda segurava um pacote de amendoins que queria preparar para a semeadura. A perita em aveias Lilija Rodina também morreu de fome, como Dmitri Ivanov, que tinha acabado de transferir milhares de sacos de arroz para outros armazéns. Os colegas lamentaram as perdas – mas seguiram em frente. Mesmo perto da morte, não ocorreu a nenhum deles roubar os estoques de sementes.
Por que não? Isso só é compreensível quando se conhece a Rússia. E Nikolai Vavilov.
Por Ute Eberle

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