De que maneira o uso de instrumentos e artefatos tecnológicos alteram a percepção humana e a relação entre as pessoas, transformando-se em uma parte destacada do corpo
A humanidade está diante de um novo desafio: lidar com um corpo que é um conjunto de bits — escaneáveis e intercambiáveis — em detrimento do corpo bioquímico, orgânico, mais afeito às tradições e ao senso comum. O corpo precisa ser repensado a partir de sua localização em um espaço semântico de interface e extensão, transcendendo os limites do psíquico e do biológico. O ser humano é uma produção que se dá na intersecção de processos múltiplos, heterogêneos e não necessariamente biológicos.
Lugar de habitação de um ser orgânico deficitário, o corpo precisou libertar-se das suas condições iniciais, passando a se caracterizar por uma “abertura para o mundo”. Porém, ao sofrer mudanças em sua corporeidade, o ser humano foi afetado em seu modo de vivenciar as dimensões do tempo e do espaço, bem como nas formas em que utiliza o seu corpo. O nosso corpo é, ao mesmo tempo, formado pela tecnologia e criador de tecnologia, gerando continuamente novos referenciais de absorção da experiência imediata. A tecnologia é constitutiva do homem.
Desde o início, o processo evolutivo da humanidade esteve marcado por um crescente poder de disposição técnica sobre as condições ambientais. Isto é, o homem supera as inadequações e insuficiências de sua morfologia ao converter as circunstâncias perigosas da natureza. Nesse sentido, a técnica é concebida como um elemento exterior que é apropriado e assume papel decisivo no processo de integração do homem às diferentes atividades e ambientes. Este é um dos fatores pelos quais se afirma a tecnologia como elemento constitutivo do homem e da vida em sociedade, presente em todas as fases do desenvolvimento civilizatório.
A figura de Prometeu, por exemplo, que capturou o fogo dos deuses, tornou- se o mito fundador da tecnologia e localiza-se no início da trajetória de conquista da humanidade. O fogo exteriorizou, pela primeira vez, uma função eminentemente orgânica (digestão), serviu para afastar predadores e contribuiu para tornar possível a vida em sociedade, mesmo diante dos rigores do inverno. Elemento natural e externo, o fogo foi apropriado, passando a ser um fazer humano, lançando uma cortina de névoa que confunde ao olhar a distinção entre o que é natural e o que é artificial.
“ Tornou-se chocantemente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade” ALBERT EINSTEIN | |
Ao olhar para o fogo, o homem recolhe informações sobre o estado da rea- lidade, as propriedades dos corpos e dos fenômenos. Aí já residia a semente de uma correlação que viria a ser determinante para a humanidade: o homem produz o fogo que, por sua vez, passa a produzir o homem ao lhe dar condições mais convenientes de existência. Nesse momento, há uma manifestação do processo evolutivo da espécie humana, pois o homem, antes obrigado, como os demais animais, a realizar os atos necessários à sua sobrevivência somente com o emprego de seus membros, passa a discernir a possibilidade de combinar elementos do mundo físico para a produção de efeitos úteis. Com isso, a dicotomia natural/artificial perde sentido, deixando de ser uma relação antagônica para ser de correspondência e complementaridade.
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Prometeu, escultura de Sébastien Adam. Na mitologia grega, Prometeu roubou o fogo dos deuses para presentear os homens. Como castigo, foi acorrentado em um monte onde todos os dias um abutre comia seu fígado. O fogo é a primeira conquista da humanidade, mito fundador da tecnologia |
As novas tecnologias de informação e comunicação representam uma continuidade amplificada daquela relação, reorganizando as camadas de sensibilidade do ser humano ao ampliarem o seu campo de percepção. Os espaços do digital e do eletrônico reestruturam a própria arquitetura do corpo e multiplicam suas possibilidades operacionais. O sentido de ser humano deixa de ser restrito à prisão de um corpo, se abre para um além da pele. É o corpo que acessa a internet, se pluga em dispositivos portáteis de comunicação sem-fio, assumindo como princípio o nomadismo. Dispositivos virtuais e próteses sintéticas aceitam, transformam e respondem às ações do corpo biológico, manipulando dados biológicos como calor, movimento, sopro, sons, etc.
ALTERAÇÕES DA SUBJETIVIDADE
Dessa maneira, a pele já não funciona mais como fronteira para o eu. Vivemos uma realidade cibernética, na qual nossos corpos e suas superfícies são membranas pelas quais flui a informação. As redes tele-informáticas e os dispositivos neo-tecnológicos estão provocando uma alteração brusca na forma de vivência das experiências subjetivas, forçadas cada vez mais para fora do claustro. O corpo permeável se dissolve e o senso de individualidade física e mental declina. As fronteiras do corpo passam a ser definidas mais pelos fluxos de informação e seus ciclos de feedback do que pela superfície epidérmica: o corpo morreu. Morreu como representação — objeto entre os objetos. Tornou-se um sistema cujas partes podem ser montadas e desmontadas, deixando de ser uma entidade cuja completude orgânica possa ser assumida. O corpo vive, por outro lado, como emergência de um novo tipo de subjetividade, constituída pelo entrecruzamento do orgânico com a materialidade da informática, as remodelagens estéticas e a imaterialidade da informação. Essa reconfiguração e seus limites instauram uma nova forma de continuidade entre o ser pensante e o mundo
Abandonar definitivamente o conceito cartesiano de identidade-corporal, segundo o qual uma pessoa é definida pela substância de seu corpo, deixa como possibilidade a migração para o conceito de identidade-padrão, no qual a essência de uma pessoa é definida pelo padrão de processamento informacional que acontece em seu complexo corpo-cérebro. O conceito de identidade-padrão bebe diretamente da fonte do pensamento cibernético, que já sinalizava para um corpo sem fronteiras, poroso e permeável. Assumir o conceito de identidade-padrão significa deixar em aberto a possibilidade de preservação de um indivíduo via preservação de seu padrão informacional correspondente, o que leva alguns tecnoentusiastas a falarem em downloads completos de mentes em bases artificiais.
O ser descobre o mundo tateando-o. Em uma era da primazia da visão, muitas vezes
nos esquecemos que a atividade sensorial primitiva de todos os animais, e a mais necessária, é o tato, conforme já ensinava Aristóteles. É na sensação háptica que se encontra
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No homem, a evolução não se limitou a seu corpo orgânico. Materiais do mundo externo foram usados como suporte para ampliar capacidades. Na imagem, células tronco, roda e acelerador de partículas |
o fundamento da catexia, isto é, o investimento de libido em algum objeto externo. O tato é a gênese do desejo. Ter desejo é ter um sentido de propósito — e então estamos no início da vida.
Muitos optam por situar a gênese do humano no primeiro uso de um artefato. A relação de apropriação do ambiente para ajudar na realização de alguma finalidade, porém, é mais antiga e se mistura com a própria origem da vida — controlar o ambiente é controlar a si mesmo, um processo contínuo de aprendizado.
A catexia primordial é vista, em termos freudianos, como instinto sexual e instinto do ego, tensões entre o eu e o não eu, em uma constante batalha entre o impulso de fundir-se e o impulso igualmente forte de ficar separado. Ao longo desses jogos com o ambiente, nasce a produção e o uso de artefatos, como um resultado da aplicação de conhecimentos sobre causas e efeitos entre objetos. De uma postura estritamente física, adotada diante de objetos como pedras, passou-se a uma postura de design, conforme sustenta o filósofo norte-americano Daniel Dennett.
O artefato, concebido por um designer, tem que ser, por definição, mais eficiente do que o homem na realização de uma determinada tarefa. Do contrário, não valeria a pena sua invenção, planejamento ou construção. Para ser útil — utensílio — precisa funcionar como mediação transformadora da realidade, concebida pela consciência e voluntariamente criada pelos agentes que dele podem dispor. Essa capacidade de ter uma postura de design — obedecer às qualidades das coisas e agir de acordo com as leis dos fenômenos objetivos, de forma hábil — é precisamente a essência da técnica. A técnica (tékhné) substituiu a magia como uma imunização contra a sorte (tuché).
Por André Sathler Guimarães |
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