Freud reconhece que há algo para "além do prazer", que seria exatamente aquilo que nomeou de pulsão de morte, tendo a compulsão à repetição como uma de suas principais expressões para a construção do conceito de gozo por Lacan
Acrescento que a oposição entre o prazer e o gozo é essencial. O princípio do prazer aparece, de algum modo, como uma barreira natural ao gozo e, portanto, a oposição se estabelece entre a homeostase do prazer e os excessos constitutivos do gozo (Miller, 2012, p. 14)
Temos observado na atualidade um tipo de exigência de satisfação irrestrita, que reflete bem a tônica da nossa chamada “sociedade do consumo” contemporânea, ou “sociedade do excesso”. O “supérfluo”, o “descartável”, o “excesso” e o “ilimitado” são marcas características da nossa cultura. Ipod, Ipad e Iphones 1, 2, 3 e 4 ilustram bem o que queremos dizer. O equivalente desse fenômeno cultural tão atual, pensado a partir da teoria e da clínica psicanalíticas, nos remete ao conceito de “gozo”, teorizado pelo psicanalista francês Jacques Lacan a partir, pasmem, do final da década de 1950.
“Goze!” Sim, segundo Lacan, é isso o que ouvimos, tanto externamente (voz da cultura) quanto internamente (voz do supereu). Não amanhã, não daqui a pouco, não parcialmente, mas sim aqui, agora e integralmente, até o limite (ou além). O que importa é o prazer imediato e ilimitado, sem contenção e sem barreira. O que se busca é gozar a qualquer preço. “Por que resistir às tentações?”, pergunta um cartaz afixado em um restaurante a quilo no centro da cidade. “Pecado é tentar resistir...”, afirma uma faixa na entrada de uma loja de doces. Ou seja, “goze!”.
Para o Marquês de Sade, o gozo se trata apenas de usufruto, e não de propriedade. Para ele, apesar de não haver o direito de propriedade sobre o corpo, há o direito usufruí-lo, durante o tempo que isso lhe der prazer
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• Precursor do sadismo •Marquês de Sade foi um aristocrata francês e escritor libertino. Muitas das suas obras foram escritas enquanto estava na Prisão da Bastilha, encarcerado diversas vezes, inclusive por Napoleão Bonaparte. De seu nome surge o termo médico sadismo, que define a perversão sexual de ter prazer na dor física ou moral do parceiro ou parceiros. Foi perseguido tanto pela monarquia (Antigo Regime) como pelos revolucionários vitoriosos de 1789 e depois por Napoleão.
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Em seu uso cotidiano, o termo gozo reveste-se, principalmente, de uma dimensão jurídica e outra sexual. No vocabulário jurídico remete à noção de usufruto, ou seja, ao direito de gozar de um bem, gozar de férias etc. Essa conotação jurídica do termo gozo opõe claramente gozo e propriedade. Oposição esta que o Marquês de Sade reforça quando afirma “tenho o direito a gozar do teu corpo”, porém “somente durante o tempo que isso me der prazer”, ou seja, trata-se apenas do gozo e não da propriedade do corpo. Em sua conotação sexual, gozo e gozar tornam-se sinônimos de prazer, mais especificamente da expressão máxima do prazer sexual. Não por acaso, o psicanalista francês Jacques Lacan escolheu o termo “gozo” (jouissance, em francês), palavra que possui conotação sexual, tanto em português quanto em francês, para nomear o conceito psicanalítico que inventara. Para ilustrar a importância do caráter sexual do gozo lacaniano, o termo jouissance foi utilizado sem tradução na maioria das edições inglesas da obra de Lacan. Isso se deve ao fato de não haver, na língua inglesa, um significante capaz de expressar tal aspecto sexual do conceito psicanalítico de gozo. A palavra inglesa que mais se aproximaria seria enjoyment. Como contribuição psicanalítica à língua inglesa, o termo jouissance passou a figurar no tradicional dicionário Oxford.
Jacques Lacan escolheu o termo “gozo”, palavra que possui conotação sexual, para nomear o conceito psicanalítico que inventara
Arte de transgredir Segundo Lacan, o conceito de gozo remete à ideia de um excesso, de uma transgressão (da lei), de um “ir além dos limites” ou “além do prazer”, como preferiu Freud ao dar título ao seu texto de 1920, “Além do princípio de prazer”. Este é considerado um divisor de águas na teoria psicanalítica que, até então, considerava o “princípio de prazer” como princípio regulador do aparelho psíquico, o qual conduziria o indivíduo à busca pelo prazer e à evitação da dor. A partir da publicação deste trabalho, Freud reconhece que há algo para “além do prazer”, que seria exatamente aquilo que nomeou de pulsão de morte, tendo a compulsão à repetição como uma de suas principais expressões.
O princípio de prazer, segundo Freud, é caracterizado, resumidamente, pela evitação da dor, do desprazer, e a busca pelo prazer, mantendo a excitação do aparelho psíquico no menor nível funcional possível
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Fazendo coro à importância do tema em questão, tanto na teoria como na clínica, a psicanalista Ana Maria Rudge, em seu artigo “Pulsão de morte como efeito de supereu” (2006, p. 79), diz que a questão da constituição desta força que empurra o homem para a dor e para o sofrimento constitui o tema central na obra freudiana. “Pela irresistível atração pelo sofrimento que as caracteriza, essas manifestações clínicas foram o estopim para a maior reformulação da teoria freudiana, aquela que introduziu a segunda tópica e, no seio da nova teoria pulsional, a pulsão de morte, noção tão ambígua, controvertida e com frequência recusada, explicitamente ou não, por tantos psicanalistas.”
Para nos auxiliar na compreensão deste conceito-chave da obra lacaniana, o gozo, vejamos como este se relaciona com o princípio de prazer de Freud.
Fronteiras do prazer Pode-se dizer que o princípio de prazer funcionaria como uma espécie de limite ao gozo. De acordo com o princípio de prazer, o sujeito deveria “gozar apenas o possível”, para que não adviesse o desprazer. Sendo o conflito psíquico a base da teoria freudiana, e considerando- -se a impossibilidade de compatibilidade harmoniosa entre pulsão e cultura, o sujeito insistentemente almeja transgredir as proibições impostas ao seu gozo para ir “além do princípio de prazer”. Entretanto, o resultado desta transgressão ao princípio de prazer não é mais prazer, senão dor, pois o que é prazer por um lado, por outro é desprazer. Além deste limite, o prazer é acompanhado de dor, e este “prazer dolorido” é o que Lacan nomeou de gozo. Serge Cott et (1989, p. 21) coloca a questão da seguinte forma: “(...) há uma zona do prazer que é perigosa, essa zona que tende a ir para o gozo e que o princípio do prazer bloqueia”.
Por Arthur Figer
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